Em sua titânica obra A Segunda Guerra Mundial, editada em 1965, o historiador Raymond Cartier dedica um capítulo inteiro à Batalha de Dunquerque. Chamado "Milagre em Dunquerque", o capítulo coloca o evento num status similar ao desembarque da Normandia, o ataque a Pearl Harbor e a Batalha de Stalingrado.
O fato em si acontece no ápice da ofensiva nazista sobre a Europa Ocidental. Cerca de 400 mil soldados britânicos e franceses ficam cercados no porto de Dunquerque, esperando o resgate vir do outro lado da Canal da Mancha. Tais eventos já foram representados na tela grande - em especial num filme inglês de 1958, O Drama de Dunquerque.
O que levaria então o cineasta Christopher Nolan, conhecido por sua virtuose narrativa em filmes de temática fantástica - como Interestelar, A Origem, O Grande Truque e a trilogia do Cavaleiro das Trevas -, se interessar por um tema assim?
Dunkirk (ainda não entendi porque o título não usou o nome aportuguesado) é o décimo longa do cineasta. Para chegar nesse marco, Nolan parece querer sair da zona de conforto e fazer algo diferente da sua obra pregressa. Parece se testar - ou, então, queria provocar seus críticos.
Virou costume apontar alguns problemas em filmes mais recentes do diretor britânico. Como o excesso de didatismo e explicações; ou o fato de que algumas de suas cenas de ação apresentam cortes incoerentes. Ele aposta então numa narrativa com poucas falas, apesar do grande número de personagens. Nas sequências de ação, a ênfase é maior na decupagem (ou seja, no planejamento do que será filmado) do que no ritmo frenético da edição.
Contudo, não é precisamente uma reinvenção de Nolan como artista. Há um elemento típico seu, que é a virtuose narrativa. Dunkirk conta três histórias paralelas, cada uma delas com tempos diferentes: há os soldados que esperam o resgate por uma semana, os civis que navegam para salvá-los por um dia, os aviadores numa missão de uma hora.
Há uma perfeita cadência na alternância dessas histórias, e também do verbo que elas conjugam como temática. Numa, é sobreviver; na outra, salvar; na terceira, lutar.
O envolvimento entre esses três níveis garante aquilo que o filme mais tem: tensão. Os respiros são breves e, na verdade, são quase pegadinhas: quando achamos que podemos relaxarr, o perigo reaparece com mais drama.
Em suma, Dunkirk é aquele tipo de filme que te deixa na ponta da poltrona a projeção inteira.
É um grande cinema sensorial e imersivo em termos de experiência. Há quem não vai gostar. Eu achei incrível. O nível de realismo obtido por Nolan, que é adepto dos efeitos práticos ao invés de computação gráfica, é surpreendente. Os combates aéreos são poderosos exatamente pelo seu realismo, e não por efeitos visuais superlativos.
Tecnicamente, é um filme soberbo, belamente fotografado e com uma edição de som esmagadora. O uso enfático dos graves já na primeira cena mostra obriga a imersão do espectador; há detalhes bem pensados, como o sacudir barulhento nos precários aviões de caça. A trilha de Hans Zimmer, que às vezes se compõe apenas de ruídos mecânicos, acrescenta na angústia das cenas.
Dramaticamente, o melhor segmento é o que acontece dentro do barco, por ter mais camadas emotivas entre os personagens; ele contrasta com o quase egoísmo pela sobrevivência dos soldados na praia e com a vontade focada dos pilotos. Essas oposições se alimentam.
No último ato do filme, Nolan se permite um momento poético quase trágico, quando um avião sem motor sobrevoa a praia cheia de homens em fuga. Mais adiante, ele se rende a um dos seus truques estilísticos, uma montagem com uma narração em off, que tem um certo tom de patriotada britânica e que talvez fosse dispensável. Ou talvez não, já que o texto lido é um poderoso discurso de Winston Churchill.
Dunkirk é um filme para ser visto no cinema. E é grande candidato ao Oscar do ano que vem. E Nolan me mantêm sempre interessadíssimo em seu próximo filme.